Gisela Casimiro
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O mundo parece caminhar para o abismo. Na Ucrânia, a guerra perdura com drones a sobrevoarem os céus de vários países europeus. A ameaça do conflito alastrar nunca foi tão provável. As imagens que chegam da Palestina são apocalípticas, adquirindo contornos inacreditáveis quando escutamos vários líderes mundiais a justificar o injustificável. Face a isto, o chamado direito internacional acabou atirado para a fogueira. Nos EUA, perseguem-se imigrantes, separam-se famílias, deportam-se pessoas como quem caça gado. Por cá, o discurso de ódio alastra, o racismo banaliza-se, as redes sociais propagam gestos e actos e insultos legitimados por uma Assembleia da República onde tudo é já possível. Por vezes, parece estarmos a viver dentro de um pesadelo em que entre ficção e realidade deixa de haver qualquer fronteira.
Qual o lugar da poesia num mundo assim? Ainda há espaço para a beleza? Diga 33 – Poesia no teatro é também um espaço de diálogo que busca reconciliar-nos com o mundo.
Em Outubro, o Teatro da Rainha receberá a escritora, artista, tradutora, performer e activista Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) para uma conversa que, entre outros temas, procurará reflectir o racismo e a literatura.
Dia 21 de Outubro, às 21h30, na Sala Estúdio do Teatro da Rainha.
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Sobre a escritora Gisela Casimiro:
Escritora, artista, tradutora, performer e activista, Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) estudou Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Fez parte da associação anti-racista e feminista INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal, criada por Joacine Katar Moreira, e é membro da UNA – União Negra das Artes.
Publicou dois livros de poesia pela Urutau: “Erosão” (2018) e “Giz” (2023). Um poema seu afixado na rua foi alvo de um processo judicial por chamar a atenção para o racismo nas forças policiais. O caso acabou arquivado. Em 2023, reuniu crónicas e textos de não-ficção no volume “Estendais” (Editorial Caminho). É autora do texto e dramaturgia de “Casa com Árvores Dentro” (Co-produção da Companhia de Actores, Centro de Artes de Ovar e RTP2, 2022), peça encenada por Cláudia Semedo, e foi uma das autoras participantes na décima sétima edição do projecto PANOS – palcos novos palavras novas, do teatro Nacional D. Maria II, com a peça “Vida: Uma aplicação”. Trabalhou ainda com Ana Borralho e João Galante, mala voadora, Sónia Baptista e Romeo Castellucci. Expões as suas obras n’O Armário, Balcony, ZDB – Zé dos Bois, Galerias Municipais do Porto e de Lisboa, Galeria Municipal de Almada, MACE – Museu de Arte Contemporânea de Elvas, Reocupa, Appleton e Museu Afro-Brasil Emanoel Araújo. Participou em várias antologias nacionais e internacionais, estando alguns dos seus textos traduzidos para turco, mandarim, alemão, espanhol e inglês. Traduziu para português o livro “Irmã Marginal”, de Audre Lorde (1934-1992), escritora, filósofa, poeta e activista norte-americana.
Temas não faltarão, nem poemas que ajudem a respirar nestes tempos de dúvida. A conversa estará, como sempre, aberta a quem nela pretenda participar.
REFÉNS
Reféns do passado, dos atrasos, dos sonhos adiados.
Reféns da casa onde vivemos,
a de agora e a de outro tempo.
Reféns do corpo, do dinheiro, do trabalho.
Reféns da falta de tempo e do tempo malgasto.
Reféns do tempo e do mau tempo.
Reféns do tempo em que.
Reféns uns dos outros.
Reféns da moda, da comida, da TV,
das revistas, dos telefones
e dos computadores, das decisões, das paixões,
do medo e do modo de agir que nos leva a não agir de todo.
Reféns do escuro e do seu oposto.
Reféns do orgulho, da crise, do governo,
das prioridades dos meios-termos.
Reféns dos termos, se os houver, certos ou incertos.
Reféns de pensar, de sentir, de dar e de tirar.
Reféns do desabafo, de pedir emprestado.
Reféns do passado.
Reféns da fé e do pecado.
Reféns da bondade.
Reféns da maldade.
Reféns às vezes por acaso,
mas quase sempre por vontade.
Gisela Casimiro, in "Erosão", Urutau, 2002, pp. 24-25.
Fonte: Foto & texto: ARRE - Teatro da Rainha