18/05/23

A Youtuberculose Escolar


 “As máquinas vão substituir os professores. Dêem-lhes tempo e vão ver. Aliás, as novas tecnologias estão a transformar os nossos miúdos em pacóvios digitais. Nas escolas vê-se isto tudo muito bem.”

Os miúdos já não sabem brincar. Nos intervalos já ninguém conversa. O espírito crítico e a criatividade secaram nas mãos destes pigmeus digitais que saltitam de ecrã em ecrã. Indígenas que passam a vida a ver vídeos ou a fazer vídeos, onde gastam todo o seu tempo a repetir e imitar tudo o que vêem.“

Se a electricidade vai abaixo ou lhes acabou a bateria, ficam perdidos como galinhas sem cabeça. Todos querem ser gamers ou, o Santo Graal, youtubers famosos.

                             foto: canva

Há uma youtuberculose escolar. Fazem pouquíssimo. Se formos ver o que cada cachopo está a fazer no seu telemóvel, vemos que não faz mais do que quatro ou cinco coisas. Sempre as mesmas. Repetidamente. Acriticamente. Sucessivamente. Inconsequentemente. Em vinte anos a capacidade de concentração da miudagem diminuiu a olhos vistos. Não há escola que saiba competir com os sistemas de recompensa imediata que a semiótica computacional inculcou nos nossos miúdos.

Nenhum deles resiste ou aguenta a menor adversidade. Ao mais pequeno obstáculo, tudo se abandona. Parece que só restam duas possibilidades aos nossos miúdos: a estultícia ou a deserção. Temos os garotos em processo de mutação biogenética para acéfalos torsos humanos.

Os rapazes não sabem o que dizer a uma miúda. Olhem para eles ali. Sete miúdos encostados à parede cada um de volta do seu telemóvel. Se calhar até estão a falar uns com os outros. Tudo calado, com um sorriso meio parvo. Toda a comunicação entre eles está mediada por computadores e algoritmos sobre os quais nada sabem, nem querem saber. Tudo o que está para lá da sua cultura youtuber é indecifrável.

As escolas converteram-se em academias de analfabetismo social e motor. São ateneus de paspalhos. Colmeias de basbaques. Já não sabemos mais o que fazer com eles. Só nos resta agonizar e genuflectir perante o Armagedão socio-electrónico. Vamos todos morrer.”

E pronto. Estamos conversados. Já desabafámos. Estão esconjurados os medos invocados e distribuídas as indispensáveis culpas e injúrias.

Não há como negá-lo. Testemunhamos uma realidade nova entre a juventude que se percebe nas grandes e nas pequenas coisas. Um exemplo: cada vez se vendem menos brinquedos tradicionais. A quantidade de prendas digitais aumenta de Natal para Natal, de aniversário em aniversário. Quando é que imaginámos que o mais desejado presente de um adolescente pudesse ser uma cadeira. Gamer. Nunca se venderam tantas como agora. Estar sentado é um êxito comercial. O fim do mundo tal qual o conhecemos?

                          foto: canva

Nada disso. É falso que estejamos a criar uma geração de imbecis digitais. Assistimos é ao dealbar de uma geração que confronta uma outra, essa sim amedrontada por não saber acompanhar o que vai acontecendo bem à sua frente. Literalmente, à frente do seu nariz.

A obsolescência do património cultural que consideramos canónico luta de braço dado com o advento de uma cultura com códigos, linguagens, semióticas, costumes diferentes, inatingíveis para muitos. Nenhum saber tradicional consegue competir com a sistemática simplificação de processos complexos e a obtenção instantânea de resultados de elevada sofisticação e alcance.

Almeida Garrett escreveu o que escreveu, mas as suas folhas não páram de cair. Um grande sucesso musical dos anos trinta do século XX chamava-se “Anything goes” e diz a letra que, nesse tempo, os novos poetas já só sabem escrever palavras de quatro letras. Que o mundo está perdido. As arrelias mortais entre Antero de Quental e Feliciano de Castilho, Dantas e Negreiros falam do mesmo. Rimbaud, esse traficante de verdade e de fuzis que quis sempre “ser absolutamente moderno”, e cuja entrada no Panteão de França Emmanuel Macron se conformou em recusar, conheceu inimigos figadais que ainda hoje o vilipendiam.

“Não é a mesma coisa”, diz-se logo, inevitável, Sempre a mesma sentença, sob a qual se abrigou a rejeição da autoridade canónica.  Quereis comparar um Wilde com um Cruzeiro Seixas? Dizei de vossa mercê.

E é a isto que assisto constantemente como professor. Estamos tão ocupados com a nossa intransigente surdez que, por mera preguiça, a mesma de que acusamos os outros, terraplenamos tudo o que cheira a indecifrável. E misturamos alhos com bugalhos. Se deixarmos de espreitar de longe o que fazem os miúdos e estudarmos o que realmente estão a fazer com os seus telemóveis, tablets e PCs impressiona-nos que não estejamos nós também em mutação digital.

A não ser que também nós já estejamos a fazer o mesmo. Porventura, se deixamos os telemóveis em casa, voltamos para os buscar. Deixámos de comprar jornais e lemo-los nos grupos piratas de “partilha”. Se calhar já nem ligamos a TV a não ser para ver séries em “plataformas streaming” que subscrevemos porque “não há nada para ver”. Se calhar já não dispensamos o gps para ir a Amarante ou Castro Verde . Ou então é mentira que se veja constantemente casais de 20, 30, 40 e 50 anos nos restaurantes que, simplesmente, passam uma refeição inteira sem se dirigirem uma palavra. Se calhar, não há dia nenhum que não se vá à rede social de eleição publicar frases requentadas de autores que nunca lemos antes. Se calhar, o único riso que conseguimos provocar na mulher da nossa vida vem num tweet que “tens de ler”. Se calhar, a obsessão adulta e viciada com raspadinhas, televendas, reality shows e jogos de apostas online atinge níveis mais sinistros de imbecilização e desprendimento da realidade do que nos garotos toxicodigitais.

Neste afã insultuoso para com os jovens estamos disponíveis para esquecer que andamos por todo o lado a apregoar que existe uma enorme iliteracia digital e que estamos muito atrás dos restantes países europeus. Que estamos a preparar os nossos jovens para profissões do século XIX que vão desaparecer e que não devia ser nada assim. E, depois de todo o vilipêndio, somos os primeiros a ir atrás do adolescente lá de casa para que nos explique como se justificam as faltas no site da escola, ou como se marcam refeições, onde raio se clica na app do SNS24, ou do efacturas, ou do IRS, a diferença entre png e gif, ou como recuperar um ficheiro apagado, sem querer. E que ele produz em minutos o que o pai dele demora dias a completar. Já agora, em matéria de imaginação e irreverência, não me parece haver falta de ambas.

As tecnologias são como as pessoas. Nascem, crescem e antes de morrer, envelhecem. E morrem cedo. Morrem sempre demasiado cedo. As “novas tecnologias” estão permanentemente a ficar velhas. É como na vida. A escola é um lugar perfeito para observar este fenómeno. À medida que as tecnologias digitais vão entrando no universo escolar, vai entrando também a velocidade de obsolescência que as define. Uma não entra sem a outra. A tecnologia supera-se a uma tal velocidade que, se a quiser acompanhar – e quer – a escola terá de habituar-se à sua constante desactualização.

Deixemo-nos de pânicos, de lérias e de injúrias.

                          foto: canva

É completamente possível substituir muito professor por máquinas, com enorme vantagem para quem aprende e para quem ensina. Dito isto, custa assim tanto entender que ninguém defende que se substituam professores por máquinas? Trata-se de mudar a forma de aprender. Uma rede digital pública, livre, acessível, sem latência, que aprende com quem aprende, construindo ambientes de realidade aumentada, disponível em todos os cantos do mundo, congraçando informação nos mais litorais e interiores lugares; sair à rua e olhar para um edifício, um quadro, um astro, uma foto, tendo disponível uma ficha de detalhe configurável, com curadoria científica, profissional, pedagógica, adequada à idade e custodiada ao modo de aprendizagem do aprendiz, explicando tudo de forma apelativa e direitinha não me parece evitável, ou sequer indesejável. Isso está a acontecer. Isso tem de acontecer. E vai acontecer com todas as previdências e salvaguardas constitucionais, porque nem todos somos parvos.

Conjugar esta visão com uma perspectiva de autonomia pedagógica partilhando com quem aprende a autoridade de determinar o que quer aprender, a que ritmo e por que forma? Por que havíamos nós de interromper este curso? Luddismo oitocentista?

É claro que é possível substituir um professor por uma máquina. E depois? Também a escova de dentes substituiu o indicador. Aleksandar Mandic: “Para quem só tem um martelo todos os problemas são pregos”. Julgar ao longe o que não se conhece ao perto é sempre a receita do disparate.

Nenhum professor teme ou deve temer a presença da máquina. Bem pelo contrário. Deve explorá-la e conhecê-la a fundo. A tecnologia faz parte da sua natureza evolutiva, como profissional que quer aprender. Achar que o papel de um professor se resume a ensinar, ofende tudo e todos. É recusar-lhe o prestígio da curiosidade.

Nestes combates postiços de vida e morte entre miúdos, professores e máquinas desfila um chorrilho barulhento de patranhas, sopra um bacilo contagioso, asmático de hipérboles pávidas e pouco mais do que isso.


Fonte do texto e fotos: SIC Notícias
15:25 25 Janeiro, 2022 | Rui Correia, Professor


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Fala quem sabe, disse quase tudo. Opiniões são escusadas. Ou temos que refletir o que queremos para esta sociedade ou então nada vai valer a pena...  
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