10/06/25

Reflexão do dia (Francisco Pascoal)

 



Desabafo sobre o anti-intelectualismo que tenho sentido

De há uns tempos para cá, tenho sentido algo que, inicialmente, tive dificuldade em identificar, mas que, agora que a extrema-direita ganhou tanto poder, me parece evidente — uma onda de anti-intelectualismo.

Não é difícil perceber como é que uma postura contra os intelectuais pode ser instrumentalizada para degradar as instituições democráticas. Aliás, a pobreza do discurso político moderno é um sintoma deste anti-intelectualismo. Nos debates das últimas eleições, parece-me que se deu primazia a um modelo de discurso rápido e de valor mediático, mas com pouco conteúdo de fundo. De facto, as próprias pessoas, na sua generalidade, talvez não tenham paciência para ouvir longos discursos intelectuais (ainda menos discursos técnicos). De certa forma, as atividades intelectuais têm vindo a perder o prestígio que deveriam ter. Quase que se trata essa palavra como um insulto, embora ainda não tenhamos chegado lá.

Recentemente, os ataques incessantes da administração Trump a várias universidades dos EUA são um exemplo modelo de como o anti-intelectualismo é usado para manipular as pessoas e sedimentar um poder autoritário. São precisamente os não-intelectuais que caem na esparela de pensar que por um líder político ter sido eleito democraticamente (o que aliás não é posto em causa por quase ninguém ao longo do espetro político), significa que não há problemas com a democracia. Ou pior, recaem imediatamente para a falácia do boneco de palha, porque tendem a caracterizar qualquer crítica à degradação da democracia como um argumento que já estamos a viver no fascismo. Naturalmente, argumentam que ainda estamos em democracia e que os críticos são alarmistas, etc. É ridículo como há pessoas que se sentem escandalizadas quando dizemos que o Chega é um partido fascista, como se esse partido tivesse sofrido alguma limitação da sua liberdade de expressão e como se não tivesse os meios para ter chegado à segunda posição do poder político, sem nenhuns entraves por parte do Estado democrático. Paradoxalmente, parece que não se pode criticar o Chega, o partido que critica tudo e toda a gente, porque então somos acusados de sermos intelectuais da cidade, de uma elite privilegiada, etc.

Em especial, também importa notar que esta onda de anti-intelectualismo tomou um pendor de automutilação. Já começamos a ver jornalistas e intelectuais a argumentarem sobre a importância de deixarmos os discursos intelectuais, como se os pensadores críticos representassem uma elite que ignora “os verdadeiros problemas das pessoas”. Como se o problema estivesse nas pessoas com a capacidade de exercer o pensamento crítico, com cultura geral e, muitas vezes, com formação avançada (obtida através de anos de esforço intelectual).

Caímos na ironia (um paradoxo sem piada nenhuma, diga-se de passagem) de ver intelectuais de direita a defenderem acerrimamente o direito da liberdade de expressão, que nunca foi negada à extrema-direita, que insulta tudo e toda a gente, incluindo no parlamento; mas, ao mesmo tempo, criticam veementemente quem usa a sua liberdade de expressão para criticar essas ideias de extrema direita e, mais importante, criticam o protesto (também liberdade de expressão). Claro que todos os partidos têm liberdade de expressão. Isso nunca foi colocado em causa. Contudo, o movimento anti-intelectual defende esta ideia errada de que existe uma opressão da liberdade de expressão de pessoas que defendem absurdidades (algumas das quais são, simplesmente, factualmente erradas, como é o caso do movimento anti vacinas), porque as criticamos abertamente como absurdas e perigosas.

Nos EUA isto tem tomado proporções preocupantes. O direito da liberdade de expressão está a ser posto em causa, incluindo a liberdade do protesto. Tem-se criado esta narrativa falaciosa, segundo a qual as universidades são pontos de doutrinação ideológica de esquerda. Naturalmente, para a direita (não me estou só a referir à extrema-direita), as suas ideias são “não ideológicas”, porque zelam pelo bem comum e são universais, etc; mas as ideias de esquerda são só ideológicas, como se não tivessem bases analíticas para serem suportadas. Isto é uma imagem falsa. A direita é bastante ideológica. Mesmo quando defende a pátria e o valor da família (com a imagem da mítica “família tradicional”), a direita está a ser profundamente ideológica. Assim, em Portugal, atacaram as aulas de cidadania, argumentando que coisas como constatar a realidade biológica da existência de pessoas homossexuais é uma questão ideológica, mas que defender ideias nacionalistas já é uma coisa imparcial e não-ideológica. Chame-se os bois pelos nomes, foi um exemplo de anti-intelectualismo.

Nos EUA, o governo quer proibir Harvard de ter estudantes estrangeiros, porque tem estudantes que usaram da sua liberdade de expressão para expressar opiniões de protesto. Como é que isto não é visto como uma degradação flagrante da democracia!? Como é que isto não é visto como um profundo anti-intelectualismo?

Em Portugal, infelizmente, estamos a caminhar para o mesmo sítio. Já se vê sinais pela maneira como querem rapidamente alterar a Constituição e retratar direitos consagrados pela lei fundamental como questões ideológicas (há pouco tempo ouvi, num podcast abertamente de direita, argumentaram que era um excesso a Constituição consagrar o direito universal à educação). Querem retratar o minimalismo legal como uma visão não ideológica, quando na verdade o que querem é precisamente o oposto. Querem moldar a lei à própria ideologia.

Os intelectuais, independentemente das suas ideologias, são pessoas que, em princípio, têm a capacidade do pensamento crítico (e eu valorizo isto mesmo quando têm ideias com as quais eu não concordo, preciso de deixar isso claro). Mas nem todos têm esse pensamento crítico ou preferem enterra-lo por interesses, infelizmente. Em qualquer caso, não admira que regimes autoritários ataquem universidades com desculpas inacreditáveis, porque é um passo para enfraquecer a democracia. Esse enfraquecimento não tem de ser necessariamente um plano premeditado para criar um regime fascista como aqueles que vimos no século XX; mas, antes, é uma forma de sedimentar poder e manter as desigualdades que, por sua vez, sedimentam ainda mais esse mesmo poder.

As universidades são pontos de criação do conhecimento onde uma enorme diversidade de ideias se cruzam, ao longo de todo o espetro político. Geralmente, entre estudantes e professores é possível debater ideias livremente e criticamente, pelo que a caricatura que se tem feito por parte da extrema-direita é profundamente errada e tem consequências negativas para a sociedade. Não devia ser necessário esclarecer que não me refiro às universidades como lugares perfeitos, tenho muitas críticas a várias instituições, mas certamente não as vou criticar por serem pontos onde se formam e juntam, maioritariamente, intelectuais.

Infelizmente, muitas pessoas não gostam de intelectuais. Isto é um facto com que me tenho vindo a deparar várias vezes. Especialmente quando os intelectuais defendem ideias com as quais não concordam ou, pior ainda, quando demonstram a complexidade real dos problemas e questionam as ideias estabelecidas. Ao longo da vida, mesmo fora do contexto da política atual, é costume ouvir comentários depreciativos em relação a quem tem o Ensino Superior concluído, pelas mais diversas razões. Aliás, não falta quem considere, com desprezo, que há cursos sem importância (geralmente os das artes) e que não é preciso ter o ensino superior para ter muito dinheiro, entre montes de variantes. A simples ideia estabelecida de que o ensino superior serve simplesmente para vir a ganhar dinheiro e não como um polo de aprendizagem e criação de conhecimento é um sintoma maior do sentimento anti-intelectual.

A universalização do acesso à educação foi uma grande vitória do mundo moderno, pelo que me entristece a facilidade com que as pessoas a desprezam. Sempre me entristeceu ver colegas a desprezarem o facto de terem acesso à educação. Geralmente, julgam que o que não é imediatamente útil para as suas vidas e para obterem mais dinheiro não é importante e é uma perda de tempo. Eu acho que é aí, talvez, onde começa o sentimento anti-intelectual.

Um exemplo claro de anti-intelectualismo vê-se na subalternização da cultura. Mas, como dizia Vergílio Ferreira, frustrado com os seus alunos, só percebemos a importância da cultura quando a temos. Assim, para quem não a tem e não quer ter, é extremamente difícil explicar o seu valor.

Enfim, este texto é apenas um pequeno desabafo frustrado de um intelectual que vê um discurso cada vez mais pobre a ganhar cada vez mais poder. Entristece-me a crescente limitação das ideias e a pouca diversidade de pensamento. As redes sociais, curiosamente, são o lugar onde o protesto consegue ganhar vida e onde pensamentos dissidentes ainda conseguem ser ouvidos, embora lutem contra a uniformização imposta pelos algoritmos.

Francisco Pascoal (08 Junho 2025)




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