Em O Resto é o Futuro – Recital de autores censurados, propomos um périplo no tempo e no espaço que nos transportará da antiguidade à actualidade, passando pelo Estado Novo, viajando até à União Soviética, espreitando o Macarthismo, encarando a Europa do Index Librorum Prohibitorum, da Queima das Vaidades, da Proibição dos Bispos, da bücherverbrennung (queima de livros na Alemanha nazi), penetrando nas literaturas do Médio Oriente, Afeganistão, China, América Latina… Em todos esses lugares e em diversos períodos históricos vislumbramos escritores censurados e cancelados, perseguidos, presos, vítimas de atentados, torturados, assassinados, seja porque alguém os considerou heréticos ou obscenos, pervertidos ou perturbadores da ordem e da moral vigentes, seja porque escreviam com a inconveniência que está na raiz da crítica.
Pedimos de empréstimo ao poeta Daniel Filipe (1925-1964), cabo-verdiano perseguido e torturado pela extinta Polícia Internacional e de Defesa do Estado, o verso com que baptizamos este recital de textos de autores censurados. O Resto é o Futuro porque é ele quem nos espreita, neste porvir inquietante de releituras históricas, manipulações, rasuras e apagamentos, um porvir cada vez mais marcado pela selectividade dos algoritmos e pela ditadura do politicamente correcto ao serviço de um populismo que se apropriou da palavra liberdade para nos fazer crer que só a liberdade de alguns é que vale e conta. Nunca como hoje a literalidade foi uma ameaça ao pensamento, pois nunca como hoje esteve este tão privado dos filtros que o defendem da influência e do controlo ilegítimo das máquinas de (des)informação ao serviço do poder.
Considerados imorais, corruptores, heréticos, lascivos, de conteúdo impróprio, perigosamente perversores da moral e dos bons costumes, obscenos, lúbricos, lascivos, ignóbeis, indecentes e repugnantes, todos estes textos foram objecto de censura. Não temos do fenómeno da censura uma leitura datada, antes pelo contrário. Ela intromete-se no nosso dia-a-dia, de um modo mais ou menos declarado, através do medo incutido nos cidadãos e, mais recentemente, através de uma perversa cultura do cancelamento que procura tanto rescrever a história como impedir-nos de a pensar em função das suas conjunturas específicas. A censura não tem fronteiras, é transversal na linha do tempo e trespassa todos os regimes políticos, mesmo os que se dizem democráticos e liberais. Onde não se apresenta institucionalizada, ela lá vai assomando com pressões económicas e coerções éticas e coacções religiosas.
Entre os autores aqui retratados há deles que foram perseguidos, torturados, assassinados, detidos, apagados em campos de concentração e de trabalhos forçados, exilados, julgados, vítimas de atentados. Porque publicaram o que escreviam. No cinquentenário do 25 de Abril de 1974 pouco se debateu a censura, talvez a ferramenta mais eficaz ao serviço de um regime que durante décadas humilhou, perseguiu, silenciou e ostracizou artistas, jornalistas, sociedade civil, privando-os da liberdade de expressão, organização e acção para impor perspectivas unívocas do mundo que ainda hoje nos perseguem. A censura é um vírus que penetra consciências e nelas exerce a sua função sabotando o espírito crítico, calando, silenciando, emudecendo. A nós cabe-nos dizer.
Leituras por: Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Barros, Mafalda Taveira, Tiago Moreira.
Fonte do texto e foto: ARRE - Teatro da Rainha
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Em 10 de dezembro de 2024 nos damos conta que infelizmente a palavra censura é cada vez mais comum, usual e perigosa, numa sociedade povoada de mentes desequilibradas. Parece que nunca tivemos tão perto para que ela, a censura, assuste e mova o surgimento de novas lutas para que a liberdade de expressão seja restaurada.
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